quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Ametria


Escuta. Senta-te aqui. E... não digas nada. Absolutamente nada. Seguir para a rua, pisar o chão com a dose pessoal de combustível a entrar pelos ouvidos é único. Singular. É isso. O levantar do sobrolho, morder o lábio discretamente enquanto te apetece largar as malas, os casacos e partir um par de ossos inúteis que se encontram disfarçados por vozes de rádio ruidosas. É o que me parece. Não achas? Se calhar é por isso que ando a ouvir cada vez mais. É que, francamente, estou cada vez a ouvi-los menos. Devia pedir por favor, perguntar se posso entrar, se devo falar. Devo. Devia. Devia? Não me parece. Confesso-me pela milionésima vez e continuo repleta de mistérios e segredos que salvo um par de almas os sabem mesmo sem os sequer ter proferido. E é quase isso. Sair para a rua com os ouvidos cheios de música e senti-la a percorrer-me o corpo e a sentir as minhas veias vivas e a gritarem-me que é tão bom estar aqui e deixar marca no chão cheio de lama, não ter medo de me sujar porque o melhor é passar pelos anos e ficar com cicatrizes que nos diferenciam dos outros. Nunca fiz muito sentido. E este cruzar de pernas característico que me conforta dentro de quatro paredes já me guardou um lugar menos confortável também. Há um reverso em tudo. Como um vidro sujo que mesmo assim nos permite observar o que está do lado de lá. Lamento muito mas é-me complicado dar um sentido contínuo a tudo o que me passa dos dedos para o papel, mas acho que a vida que levo é tão egoísta que não permite que me entregue a mais nada de forma sólida, futura e misteriosa. Nasci com este propósito. Que me esfreguem na cara todas as folhas vandalizadas que arrancarão dos meus blocos anos mais tarde, meses por vir ou mesmo amanhã, acaso acorde. Que me façam tudo isso e que me privem de tudo menos da minha sanidade maleável de actriz constante. Perdi-me em explicações. Deixei falsas pistas por caminhos também falsos, errados talvez. E apesar de ser reflexo em tudo o que faço, permiti-me vaguear neste corredor - invariavelmente vazio - tempo demais. Gosto tanto de estar aqui; que não perturbem a minha paz; que me não leiam de uma forma avassaladora, assustadora e redentora; que não me façam regressar. Misturo-me muito ultimamente: confundo e confundo-me. Mudo mas volto a mudar e não mudei em nada. E regresso. Não é redenção. É por isso que me canso e não sei (e sei porquê), e canso-me constantemente. É a única certeza. Já me contaram alguns dos segredos do Universo. Creio que a partir daí nunca mais consegui andar com a cabeça tão erguida como quando andava com ela realmente escondida.


Maria Rocha, 2008

4 comentários:

anya disse...

Nunca sei bem o que dizer...
Não sei explicar o que sinto quando leio as tuas palavras.
:)**

Vanessa Lourenço disse...

Quando nasceste tiveste um último momento de puras certezas. Quando caíste no físico foste puxada para uma realidade já mastigada, cansativa, penosa até. Lembro-me de algumas coisas, quero lembrar-me de muitas mais, mas de ti, tenho a leve impressão de que nunca me esqueci. Suja-te de lama, vai saber-te melhor vestir esse vestido depois de lavado, porque o esfregas-te entre o teu corpo e a terra molhada. Um beijo imenso.*

T.E. disse...

Estás cada vez mais "avassaladora"!

Maria disse...

anya: Se te fazem sentir... por si só, faz-me sentir bem. :)

Vanessa Lourenço: É um cansaço que terá fim. De punho cerrado e final.*

bordello: Apraz-me sabê-lo.