terça-feira, 24 de junho de 2008

Curta



"Nunca mais soube de ti. Nem tão pouco me lembrei de me lembrar.
Chega a ser incómodo arrastar a memória temporal tanto tempo atrás.
Pergunto-me se as nódoas negras e a marca de cordas no pescoço
fazem parte da encenação. Há pessoas que fingem tão bem estar mortas
que só por isso o mereceriam, não achas?"




Quando fazem por nos apagar acredito que devemos saber sair de cena
sem causar grande alarido. Sair em bicos dos pés e apagar as cenas
em que as personagens se cruzam.
Apagar as didascálias que nos recordem
disso e dar espaço,
talvez para sempre, como assim o desejam.

Deve ser a alternativa mais correcta para que quem se encontra
do outro lado
do pano ou mesmo da assistência consiga reflectir que esta é só mais uma forma de não violar a liberdade de ninguém.
Ser livre magoa se uma das cláusulas for a da recusa da amizade genuína de alguém.


Talvez mais tarde alguém me explique a razão de recusarem um ombro honestamente fiel e amigo, virgem de mágoas. Talvez me consigam ensinar que o trilho que percorremos é sempre mais atribulado do que os quadros de parede.

Quando se desiste de alguém desiste-se também de nós, um pouco.


Maria Rocha, 2008

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Reflexo


Desde há momentos que sinto a cidade a respirar nas minhas batidas cardíacas. Há um pedido de ajuda em uníssono, em sintonia que me rouba o chão nos milésimos de segundo em que não tenho a certeza se o meu peito voltará a dar sinal de si. Espero que grite, espero que sangre, espero e por esperar tenho o tempo dentro do punho. Ninguém sabe ler as chamas que me habitam os olhos de tempos a tempos.
Já não as estranho, a carne habituou-se a consumir-se de todas as formas (im)possíveis.
É assim que me compreendo. Que me julgo. Que me acarinho. Tudo isto depois de me afogar na mais cruel realidade. É em confissão. Sempre. E de todas as vezes que me encontro estou cada vez mais perdida no meio desta cidade, que é minha, sempre foi. É por estar tão perdida que já fiz nascer o meu lugar.
É uma mensagem sem palavras.



Maria Rocha, 2008

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Human suit


aqui tudo continua.

o vácuo afunda-se dentro.
o corpo ressalva-se.
meu irmão, aqui vive-se sem palavras.

os pulsos em riste mas as mãos ocupadas
em armas, crimes, em nós.

se fechares os olhos e respirares fundo
podes sentir o céu a quebrar.

aqui, tudo morre.
e nós, irmão, renascemos.
o corpo envelhece e parte-se em mãos.

vamos confessar,
estes dias todos têm sido ensaios
para um quadro que ficará em branco.

diz-me, irmão, que os amigos existem
e que sabem que as vidas escasseiam

agora.



Maria Rocha, 2005