quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Espelhos



Este é o dia em que decide arrumar as roupas. Dobrá-las e enfiá-las à pressa na mala para iniciar uma viagem que planeia há muito. Não sabe bem para onde nem com quem muito menos quando voltará. A certeza é de que nos últimos anos todos os dias são o dia do início da viagem. A mala está feita todos os dias de manhã mas todos os dias surgem sempre mais roupas para arrumar. Engraçado, essas mesmas roupas que servem de base no fundo da mala que em tempos ficavam justas ao corpo estão hoje tão longe do corpo como ele do seu próprio corpo. Eu fico aqui, quieta, debruçando-me em todo o meu silêncio e paz somente a vê-lo crescer, a vê-lo tentar libertar-se de si mesmo todos os dias. Às vezes penso que estarei a desempenhar um papel de pequeno deus pois assisto imune a tudo e não me movo. Mesmo que quisesse não o faria. E ele, enquanto me passam todos estes pensamentos pela cabeça, continua a vestir-se e a viver os dias como se todos os dias fossem o começo de uma nova vida e também o final de outras. Eu sorrio as vezes que ele se senta à beira da cama e leva as mãos à cabeça. Sorrio e penso que em algum momento ele se lembra de mim. Continuo a ver os anos a passar por mim. Ele esforça-se por agarrá-los e muitas vezes consegue livrar-se de si e acelera o caminho. Tudo isto se dá quando está sozinho no quarto, quando o vejo de noite a chorar e a calar o choro de madrugada para que mais ninguém saiba que também queria poder falhar. De seguida, vejo o seu peito lentamente a abrir-se, devagar e com muito cuidado. Por uns momentos vejo-lhe no fundo dos olhos a força que mais ninguém ousa ter para enfrentar o mundo outra vez. Depois… o peito torna-se a fechar muito devagar. O receio de errar é sempre maior que toda a vontade que se tenha por algo – pensávamos os dois em uníssono, no sítio da mente em que também se fala em silêncio. É agora e aqui que eu assistindo na plateia queria muito poder chegar-me e dizer-lhe ao ouvido que tudo ia ficar bem, segurar-lhe-ia na mão beijando-a e dizia-lhe de novo que tudo ia ficar bem. Ele volta à sua vida e à rotina dos dias em que iria fazer viagens para todos os cantos do mundo todos os dias com pessoas desconhecidas e viveria aventuras. Viveria, sim… e faria todas as viagens do mundo com as roupas que já nem lhe serviam no fundo da mala. Faria tudo isso só para poder voltar e poder contar-me. Eu, uma vez mais, estaria aqui sempre, silenciada e em paz sempre à espera de o ouvir. Nunca o impediria de seguir nenhuma viagem pois sabia que acabaria sempre por voltar. De novo, recomeçaria o papel de pequeno deus e lentamente tentaria abrir-lhe o peito e dizer-lhe que agora estava tudo bem e que podíamos sempre chorar os dois e falhar as vezes que quiséssemos e ninguém nos apontaria o dedo. E depois íamos rir do que ficou para trás. Uma vida inteira. Eu teria vivido a minha vida e ele a dele. No fim de tudo restaria apenas uma só palavra que jamais se teria dito mas que eu sei que ele pensou… e eu também.

Maria Rocha, 2005

1 comentário:

Vanessa Lourenço disse...

Os silêncios querem-se calados. Revejo-me, talvez entenda porquê, só me resta decifrar nela, ou nele. Um beijo longo e apaixonado.*