Parte I
O som dos estilhaços dos vidros a partirem-se eram agora gritos que invadiam
as casas mais distantes dos arredores da cidade - foi assim que soube que algo majestoso
estava a acontecer no exacto momento em que fechei os olhos para o que julguei
ser mais uma noite de insuficiência de sono.
Tudo parecia preceder-me.
Na manhã seguinte, rumava ao café do costume que se situava a uns cinquenta metros
de qualquer ponto da cidade onde quer que eu me encontrasse. Algo me arrastava até lá,
como se aquele hábito fosse já superior a mim e não fosse eu o ser que comandava
os meus próprios membros.
Trazia uma música nos ouvidos. Uma daquelas que não tem letra propositadamente, de modo a ser preenchida por todas as possibilidades que um percurso mesmo que previamente traçado
pudesse ter.
As pernas encontravam-se nos escassos segundos que se cruzavam e pareciam ter
uma repetina vontade de parar diante das portas espelhadas das lojas que precediam
o café.
Parte II
A temperatura da cidade acompanhava a caótica temperatura corpórea que deambulava por entre as ruas. Às três da tarde era febril o calor que emanava do alcatrão e quase se ouviam as derradeiras frases semi-acabadas dos moribundos em fase terminal.
Era neste quadro que se sentava quase sempre no mesmo par de mesa e cadeira.
Era Novembro e já o ano se fazia adiantar driblando os que faziam crer que iria chover ou
que iria estar calor.
Já não haviam estações e num dia presenciar-se-ia toda a viagem de uma vida.
Parte III
O silêncio percorria e acariciava o epicentro da mobília que abraçava um só corpo.
É irrelevante tentar fugir-se ao mesmo ponto convergente.
Arrecadar palavras, gritos, sussuros, pessoas num qualquer canto da memória quando, invariavelmente, se torna a rumar à mesma casa antiga de tecto estrelado de onde se observam as cadentes partículas celestes a ocuparem o som preenchido de silêncio.
Ninguém abraçava ninguém.
Tudo não fora apenas uma espécie de jogatana pontual de quem está cansado de brincar
com os seus limites e já não tem mais nada a dever ao mundo.
É o fim. É o início do fim.
Inventam-se nomes para que possamos estar mais próximos de nós mesmos e daquilo que nos porá fim ao que (não) f(s)omos.
É completamente viciante e decadente a linha que nos une.
A nós, irmãos, tudo o que nos liga será então o nosso fim.
A ilusão de que seremos pó e de que aí então nos fundemos finalmente uns nos outros e nos possamos esquecer do que em tempos foi o nosso nome, idade ou sexo será, exactamente, o que nos afastará ainda mais.
Há o vento depois do silêncio.
O vento que nos separará as míseras partículas que, por engano, se acomodaram numa íngreme colina ou num beco sem saída de uma rua no meio da cidade.
A cidade.
Será ela que, mesmo depois de a revolvermos de baixo para cima, nos abrirá um buraco
profundo o suficiente para que nos tapemos das vergonhas que espalhámos desde a primeira respiração mais funda que fizemos?
Desde esse dia que começámos a roubar uns dos outros aquilo que pertence a todos.
Caminhamos para uma estrada inequívoca. Não há voltas a dar. Mesmo que viremos costas ao fim do trilho iremos dar-nos conta de que estamos espelhados inversamente e que jamais poderemos fugir ao destino de chegar ao fim da viagem.
Parte IV
Já não me recordo de que ponto exacto, de que rua sem saída e de que cidade fora do mapa saí.
Maria Rocha, 2006
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3 comentários:
Gosto sempre de te ler: espectacular!
[A quantos me têm lido e comentado
Desejo um Natal pleno de cor
E que em 2007
Cada despertar
Possa ser um hino
De exaltação à VIDA e ao AMOR!]
...
BLUE SHELL
ja te dei a minha opiniao deste poema, mas nunca é demais dizer que está tocante, espectacular.
ve-se tanto que nao sei o que deva focar. fabuloso *
e cada palavra, cada frase assimilada, provoca um despertar interior para algo que sempre lá esteve...pedaços de vida?...talvez. é estranahmente familiar...
que gosto em te ler! =)
**
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