quinta-feira, 12 de março de 2009

Clandestinos, II



Tenho ideia de que o que está escrito no tal guardanapo de papel era qualquer coisa que me fez suster a respiração na altura em que o escrevinhava. Lembro-me das sombras do espaço que nos acolhia. Lembro-me de pensar "o que é que eu vou ser?" e "será que vou marcar a vida de alguém?". Lembro-me de descobrir os miradouros com os passos silenciosos de quem descobre e redescobre tesouros amnésicos. Era tudo demasiadamente simples e eu mal sabia avaliar essa simplicidade. E porque se trata de uma restrospectiva, lembro-me das conversas com o João, das conversas de quarto com a Rosa e do seu sotão, dos cafés e cigarros da Joana. Lembro-me de me sentir francamente feliz quando sabia que nos íamos juntar e fazer nascer algo novo. Lembro-me exactamente do que vestia quando rumámos ao Santiago Alquimista e eu e a Joana, pequeninas como permanecemos, nos acomodámos junto ao palco e lembro-me de me sentir prestes a agarrar o mundo com uma mão e soltá-lo com a outra. É sempre assim. Sempre foi. Mas agora com mais destreza. Eu não quero e nem preciso de existir para existir. E sim, lembro-me da voz do Miguel, da guitarra do Pedro e daquelas pessoas com mais de vinte anos que me pareciam tão adultas. Agora, a caminhar para a mesma idade que eles tinham então, sinto que regressar àquelas paredes, àquelas pedras que me ampararam tantas quedas é regressar ao regaço de uma mãe carinhosa cujo perfil é discreto. Eu sei que vou passar naquelas ruas muitas vezes e sei que vou ter de parar, olhar para cima, fechar os olhos, inspirar e sorrir porque cresci. E as dores do crescimento têm sido clandestinas. Nunca as incluo em listas, em lembranças ou apontamentos. Estão, a maior parte das vezes, camufladas por tantas outras coisas que, honestamente, não me chateiam nada. Mas é assim mesmo. Pega-se no mais fraco de nós e tenta-se enfiar para dentro da mala.

1 comentário:

Vanessa Lourenço disse...

Revisitar ruínas é macabro...quando são as tuas...assusto-me sempre, quem "viveu" ali, não vive mais.***