quarta-feira, 27 de dezembro de 2006

Excerto de ti - parte I





Estive a privar-me de sono e agora que não suporto do peso das pálpebras entendo que te substituí pelo estado letárgico de quem agarra no seu próprio pescoço e encena o exercício de ruptura.


Fotografia de: Joana Velhinho

Texto de: Maria Rocha

quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

Sem bússola

Parte I



O som dos estilhaços dos vidros a partirem-se eram agora gritos que invadiam
as casas mais distantes dos arredores da cidade - foi assim que soube que algo majestoso
estava a acontecer no exacto momento em que fechei os olhos para o que julguei
ser mais uma noite de insuficiência de sono.

Tudo parecia preceder-me.

Na manhã seguinte, rumava ao café do costume que se situava a uns cinquenta metros
de qualquer ponto da cidade onde quer que eu me encontrasse. Algo me arrastava até lá,
como se aquele hábito fosse já superior a mim e não fosse eu o ser que comandava
os meus próprios membros.

Trazia uma música nos ouvidos. Uma daquelas que não tem letra propositadamente, de modo a ser preenchida por todas as possibilidades que um percurso mesmo que previamente traçado
pudesse ter.

As pernas encontravam-se nos escassos segundos que se cruzavam e pareciam ter
uma repetina vontade de parar diante das portas espelhadas das lojas que precediam
o café.




Parte II



A temperatura da cidade acompanhava a caótica temperatura corpórea que deambulava por entre as ruas. Às três da tarde era febril o calor que emanava do alcatrão e quase se ouviam as derradeiras frases semi-acabadas dos moribundos em fase terminal.

Era neste quadro que se sentava quase sempre no mesmo par de mesa e cadeira.

Era Novembro e já o ano se fazia adiantar driblando os que faziam crer que iria chover ou
que iria estar calor.

Já não haviam estações e num dia presenciar-se-ia toda a viagem de uma vida.




Parte III



O silêncio percorria e acariciava o epicentro da mobília que abraçava um só corpo.

É irrelevante tentar fugir-se ao mesmo ponto convergente.
Arrecadar palavras, gritos, sussuros, pessoas num qualquer canto da memória quando, invariavelmente, se torna a rumar à mesma casa antiga de tecto estrelado de onde se observam as cadentes partículas celestes a ocuparem o som preenchido de silêncio.

Ninguém abraçava ninguém.

Tudo não fora apenas uma espécie de jogatana pontual de quem está cansado de brincar
com os seus limites e já não tem mais nada a dever ao mundo.

É o fim. É o início do fim.

Inventam-se nomes para que possamos estar mais próximos de nós mesmos e daquilo que nos porá fim ao que (não) f(s)omos.

É completamente viciante e decadente a linha que nos une.

A nós, irmãos, tudo o que nos liga será então o nosso fim.
A ilusão de que seremos pó e de que aí então nos fundemos finalmente uns nos outros e nos possamos esquecer do que em tempos foi o nosso nome, idade ou sexo será, exactamente, o que nos afastará ainda mais.

Há o vento depois do silêncio.

O vento que nos separará as míseras partículas que, por engano, se acomodaram numa íngreme colina ou num beco sem saída de uma rua no meio da cidade.

A cidade.

Será ela que, mesmo depois de a revolvermos de baixo para cima, nos abrirá um buraco
profundo o suficiente para que nos tapemos das vergonhas que espalhámos desde a primeira respiração mais funda que fizemos?
Desde esse dia que começámos a roubar uns dos outros aquilo que pertence a todos.

Caminhamos para uma estrada inequívoca. Não há voltas a dar. Mesmo que viremos costas ao fim do trilho iremos dar-nos conta de que estamos espelhados inversamente e que jamais poderemos fugir ao destino de chegar ao fim da viagem.




Parte IV



Já não me recordo de que ponto exacto, de que rua sem saída e de que cidade fora do mapa saí.


Maria Rocha, 2006

quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

De Abitus (partes I e II)

I


há um presságio de necessidade
nas faces que passam como numa passerelle
pelo meu espelho embaciado por um desconhecido
respirar.
e de olhos fechados
gritam através da boca cosida a frio.

quero.
minas de carvão e de ouro
que me encham de asas e de olhos de diamantes;
quero os gritos das árvores,
os abraços das flores - imperatrizes do seu
império de pólen e fotossíntese áurea;
quero novas naus que arranhem céus, futuros
e índias na alma.

quero cruzadas que busquem as entranhas
do oceano grande que banha os meus braços
que tocam o horizonte fugidio -
- também o quero.


II


de seguida, arriva-me por entre as veias
o sangue em ebulição que ordena que
tudo aquilo que anseio se concretize

todo o meu corpo - antes inerte - se enche
da luz da noite e me torno imortal

sei agora - neste segundo - que carrego em
mim o poder de viajar por entre o mundo
descoberto dos dias imersos e vestidos
por pessoas e pelas noites cheias de zumbidos
de grilos e de fados improvisados nesta cidade
que alberga os gatos e os pardos

quero fazer-me desaparecer e mais me faço
emergir por entre esta camada de pessoas
que se arrasta em massa e que canta
um grito ténue e contínuo até que morre
às seis horas de cada dia

sem vírgulas
sem maísculas
sem vozes

para que tudo o que desejo
se realize e não tenha que quebrar
quaisquer regras para que me possa
evadir e me imortalizar

intermitentemente




Sérgio Ribeiro
e Maria Rocha, 2006

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Tríptico dos Elementos


nunca soube se o mar é salgado.
nunca tentei colocar o meu dedo
sobre a água, sem o afundar.
nunca quis.

nunca armei laços com força.
nunca tentei juntar-me ao ar
e vivê-lo, tornar a memória memória.
nunca soube.

quis antes que ardesse todo o mar junto
com a terra enquanto lutava sofregamente
para que o ar não me invadisse a caixa
que me compõe este habitáculo forrado
de pele.

mas tremi, quando o céu invejou
a novidade do meu punho - larguei-o
sobre o mar e ele navegou.
ainda olhei a carcaça do sol, quando ele se
pôs. no entanto, nao fui a tempo de ele me iluminar.
nunca te senti.

senti apenas o ricochete e o estrondo da força
do meu punho, da minha mão contraída e que
devagar se apoderou de toda a extensão
que os meus olhos abraçavam do limite em que o
mar se confunde com o céu. o sol nunca se transformou
em lenha que nos aquecesse. nunca nos sentiu.

até as flores se ressentiram, murchando em catadupa,
numa catástrofe de beleza morta. foi pintada
nos prados de uns olhos que já não mais
o sol verá, nem mesmo se se erguer mais alto que
a minha razão.

(uma razão ferida pelo necrófago tempo)


nunca soube se o mar é salgado
mas já o provei através das tuas lágrimas
depois das noites de punhos improvisando
o amor que nenhum dos elementos me soube prover.


Sérgio Ribeiro e Maria Rocha, 2006

(fotografia da autoria de Sérgio Ribeiro)

Consulta de Cirurgia



a cura para a minha insanidade
é a ignorância que recuso aceitar;
são as pedras que piso e volto a pisar
como o ar que insisto em julgar,
qual veneno oferecido, embrulhado
e guardado no cofre do passado

será possível auto-administrar-me
o racionamento de ar e de passos
que devo consumir para que me
não perca entre o limite máximo
de mim – do que fui, do que sou –

serei eu capaz de me converter
em qualquer uma das partes?
ou ficarei eternamente
esquinado nas mesmas ruas
onde já falo com as mesmas
pedras que piso e que volto a pisar?

a cura para a insanidade
afasta-se cada vez mais
de cada vez que me abro
e deixo que me esquartejem
os órgãos

investigam-me
de fora para dentro
e dentro para fora
com ferramentas
e objectos cirúrgicos

stop.

na verdade, alucino.

agora mesmo
vagueio por

entre

as curvas
das palavras
rectilíneas

dos médicos que me dizem
que tenho seis meses de vida

e

ao invés
de dar graças pelo tempo
que foi me concedido
rio para dentro
e penso no número três
e como seria profético
restarem-me três
meses para me curar
ou mergulhar-me
na doce ignorância

de quem não sabe
onde e como nascemos e como e onde
(nos) terminamos

não falo. não falho.
não falarei. não falharei.

tatuei-me com um ferro
em fogo para que depois
de me render à última morada dos loucos
jamais me esqueça de onde vim

da casa dos doentes


Sérgio Ribeiro
e Maria Rocha, 2006


sábado, 2 de dezembro de 2006

Explícito


não há muito que te pertença aqui nos destroços das palavras
que conseguiste arrancar do meu corpo
ficaram as nódoas do sangue inextinguível
por entre as camadas de pele
ficaram os ossos no mesmo sítio
apesar do ruído dos mesmos a estalar ter ensurdecido um par de
ouvidos
na verdade, não há nada que te pertença nestes centímetros de
carne
além dos destroços das palavras

e

das marcas dos dentes incisivos na parte de dentro dos pulsos







nunca te contaram a história da evolução e do progresso,
pois não?

repara: uma linha permite-nos evoluir mas um círculo não

da próxima, alimenta-te de forma linear



Maria Rocha, 2006