sábado, 26 de abril de 2008

Derrogação



i)

é ouvindo o guardião das palavras
que nascem as verdades
sobre o que está adormecido

sabe-se que nos sombreiam segredos,
os mais terríveis segredos

falo de sombras menos adolescentes,
menos grotescas mas ainda assim de

s
o
m
b
r
a
s

(reparo que é uma daquelas palavras
labirínticas - morre da mesma forma
que nasce; ou será que chega a morrer?
e será que nasce?)

ii)

os que nascem de madrugada
nunca se habituam a enfrentar
os reflexos
de um crepúsculo injusto
escrevo sobre liberdade e talvez
a viole,
a prenda,
a acarinhe depois da doce luta
para a tentar
conservar em mim
mas faço-o com o descanso de quem
assassina alguém para se defender
dos tropeções da morte

acredito que mesmo que escolhesse
um renovado silêncio,
todas as verdades se iriam prender
nos que guardam uma doença cega e invísivel

eternidade e liberdade terminam da mesma forma
mas não são filhas do acaso

corrijo-me: eternidade e liberdade não terminam
subsistem,
sobrevivem,
habitam

e

nunca mas nunca adormecem as verdades



Maria Rocha, 2008

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Hellway.




"De vez em quando sabe bem viciar o corpo, prometer-lhe descanso, alguma morte temporária para depois sempre se renascer em força. Sinto tudo com demasiada intensidade e por isso morro a cada instante."

Maria Rocha, 2008

Viagem

i)


Tudo o que guardei em bolsos de casacos e de calças enquanto notas a dar vida... desapareceu. E aquilo que fui levava uma lanterna a iluminar o túnel que me fez desaparecer também. O que eu queria mesmo era devolver-me àquele ritmo alucinante que me fazia esquecer de mim mas que me levava a casa - seja lá o que isso for. Não vale a pena tentar iludir o rumo dos dedos. Todos conhecem esta viagem, mesmo que seja um percurso distinto a cada nova vez. Depois do êxtase da subida há sempre uma ressaca que nos convida a uma paz urgente. Esqueço-me de mim para não entrar em colisão com o reflexo deste espelho rachado. E às vezes, gostaria que fosse de uma forma brutalmente amnésica para que nem eu nem tu nos tivéssemos de lembrar que existimos.


ii)


Devíamos agarrar em nós e cortar bruscamente com o que nos prende. Deixar de lado a educação, o conveniente e partir para um lugar ainda por descobrir, por habitar e por destruir também. Imagina assistires a um concerto e um dos músicos desistir a meio da actuação e deixar-te em pleno êxtase. Facilmente vaguearias de um estado de felicidade extrema para uma atitude zangada e de revolução. E se o que fez com que o músico desistisse naquele momento fosse mesmo isso, uma revolução? Uma das que não se vêem, mas que se sentem em acelerado e compassado crescimento. Eu sei que falo muito em música e sei que é como se tivesse estado cega este tempo todo e de repente a tivesse descoberto, como se tivesse feito o seu parto na minha extensa lista de itens a explorar. Mas é uma paixão que sempre esteve por aqui a pairar. Talvez como sombra e em quantidades regradas e em géneros arrumados. Digo-te que devíamos esquecer grande parte do que somos e fazer o exercício do espelho numa escala muito maior do que esta cidade, este país.



Maria Rocha, 2008

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Nota



Todos os trechos de músicas que nos marcam acabam por fazer parte intrínseca da banda sonora da nossa cabeça... para sempre. O mundo, tal como o conhecemos, pode não vir a acabar amanhã... mas todos os dias morrem e renascem centenas de novas versões do mesmo.
É só tratar de aperfeiçoá-las e depois manter uma que nos satisfaça.



Maria Rocha, 2008

Iminente



Cada passo é clonado em força. Ou surge uma sombra a pairar que se sente, mas muito pouco. Lamentamos que assim seja. Nesta casa não há temor de explosões e nenhum dos inquilinos se importará se a mobília permanecer destruída dentro das quatro paredes.


Maria Rocha, 2008

Clandestinos, I


Lembrei-me de convidar uns quantos rostos perdidos nos anos para tomar um copo na Rua da Barroca, depois de termos subido as escadas do Souk e de termos fechado os olhos ao compasso da voz do Miguel que cantava numa cave. Antes de começar, lembro-me que aquecia a voz com um copo de vinho tinto e que vestia um casaco preto comprido que despia depois do primeiro gole de vinho. Antes de rumarmos à cave que acolheu muitas palavras ditas, bebíamos café... aquele café intragável que nos fazia esboçar caras expressivas de tão mau que era.
E sorríamos. Escrevíamos frases soltas em blocos e guardanapos. Creio ter sido a primeira vez que olhei para um guardanapo de papel com outra utilidade além da óbvia. Acho que o guardo algures até hoje numa gaveta junto a outros tesouros.


Maria Rocha, 2008