sexta-feira, 27 de abril de 2007

Minutador



hoje é uma daquelas noites
em que os olhos teimam
em não fechar

e


travam guerra aberta

com o corpo

há apenas uma escolha dizimada
de palavras que preenchem
as nossas noites

digo nossas com o
firme punho a socar

v
e
r
t
i
c
a
l
m
e
n
t
e

a mesa de vidro

é com toda a violência que me ocupas
todas as linhas e todos os gestos



Maria Rocha, 2007

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Pretexto de revolução



num final de tarde como este,
sento-me e com o peito e mãos em chamas
construo um novo mundo
onde se desenterram os olhos das coisas

para que te vejam
para que nos velem

dentro do álcool, da música,
das claves de sol e de tudo o que não compreendo

sei apenas uma palavra que não conheço

há dias como este, em que gostava
de dar uma tarefa às mãos

e

ensinar aos astros o caminho de casa.


Maria Rocha, 2005

quarta-feira, 18 de abril de 2007

Onde a noite acaba



todos os vícios e todas as palavras suas filhas
são incapazes de se consumirem
seria como uma cobra morder a sua própria língua
sabe que os mais fortes são feitos do mesmo que os outros
e nós somos os Deuses de todos os vícios
fazemos parte dos que já esquecem o que é o Bem
mas que trazem todo o Mal em cada viagem

as mãos e todos os gestos passam pela liberdade
e sabemos que tudo o que somos está destinado
à corrupção do corpo enquanto a mente vai lutando
gravemente entre a cedência lenta e todo o gesto mais asfixiante
as cores vão perdendo a essência
e vamos ficando cegos com os anos

e daríamos uns bons cadáveres
se morrêssemos jovens
e talvez ninguém descobrisse
que tal como não fazemos falta agora
também nunca iríamos faltar a ninguém


Maria Rocha, 2005

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Indefinidamente sem título e nomes



as mãos a agarrarem-te o rosto do mundo
sem que a pele se estenda e se rasgue
as ruas a alargarem-se para que consigas passar
por todos os céus que te desenhei
sei que disse que nunca houve céu
mas se te desenhar um todos os dias
podes acreditar nas minhas mentiras toda a vida


depois sobramo-nos um no outro
estendemo-nos no fim um do outro com as noites
a fazerem o ritual e nada mais explícito
do que as bocas a morrerem umas nas outras
e os corpos a perderem-se
a prenderem-se
e a perdurarem um no outro


e a memória que me falha mais a mim
seria a primeira a confirmar que os restos são
os sucessores das palavras sem frases
e irias compreender e ler-me e tudo o resto
que viste e presenciaste de mim não seria
mais que todo o mal que te fui guardando
para que a partir do momento te deseje
mentir os céus
enquanto que dentro de tudo
se constroem e se sentem
todos os fogos e infernos
e eu que te disse que nunca houve um céu
mentia-te os céus, um por cada dia que vivesses,
mas prefiro que nos percamos e nos sobremos
nos rostos do mundo que se encontram nas ruas


há palavras que gostava de fumá-las
sempre teria uma espécie de filtro
que não deixava sair todo o peso
de uma vez só
mas seria mais um vício a ser substituído
por outro


e morreríamos também nós com as bocas
e todas as fatalidades que emergem
no meio de todos os silêncios prometidos
mas além dos céus, não te mentiria

nenhum inferno

seríamos nós a desconstruí-lo todas as noites
e seríamos também nós os que iriam fazer com que
os rostos, bocas, mãos, noites não mais se encontrassem


seríamos nós a sentarmo-nos nos sentimentos
e fazer da corrupção do ser todo o sentimento
que compõe o amor



Maria Rocha, 2005

domingo, 8 de abril de 2007

Constrita


Executo cada ordem que inscrevo nas folhas de papel que fazem torres à minha volta. Já não me incomodo. O tempo de me evitar findou de novo. E de vez. Fazer as pazes
com quem somos revela-nos que estamos prontos a começar de novo e que não temos
medo de nos magoarmos. Ponto. De momento, limito-me a seguir sofregamente a velocidade dos meus dedos e a força com que a caneta emprega contra a mesa de madeira. Durante tanto tempo houve o temor de que se deixasse provas à minha volta, que me iam dizer quem eu era. Não o podia permitir. Agora vejo isso. Apesar de oferecer bocados do que sou a objectos e a pessoas nunca soube ver-me com o espelho limpo sem ponta de vapor que escondesse as imperfeições. Sempre tive receio de me confrontar com o meu reflexo e nunca tive medo da minha sombra. Não deixa de me fazer esboçar um sorriso. Entendo agora que o meu equilíbrio é exactamente o meu desequilíbrio. Assumi-lo, principalmente. Fazendo-o, que mais poderá acontecer?
Hoje vou dormir comigo sabendo que a velocidade dos meus dedos me proporcionou mais uma viagem.

Amanhã, à mesma hora?


Maria Rocha, 2007

Sem cara


há alturas em que não tenho cara e sorrio nas minhas entranhas.
tresloucadamente. satisfatoriamente. calmamente.
limpo-me com as mãos e finjo brincar com o ar e com os pássaros.

sem cara.

sempre fui assim. abandonei-me inúmeras vezes para poder
reclamar esta casa vazia como minha.
prefiro-a assim. silenciosa. pacífica. de modo a que
mais ninguém partilhe do mesmo que me corre pelo corpo.

em tempos, tentei negar. agora já nada importa.
consegui avançar e retroceder e regressar ao ponto
onde tudo começa.

incrível, não é? talvez nunca ninguém me compreenda
e é exactamente isso que exijo. que nunca ninguém descubra
o meu segredo de permanecer invisível ao assumir
milhares de identidades em todas as vidas que vivo.

é fácil fazer as contas, creio.

pretendo e é isso.

amanhã não te vais lembrar que passei na tua vida.
mas eu... sim.

há alturas em que não tenho cara e sorrio nas minhas entranhas.
tresloucadamente. satisfatoriamente. calmamente.

sem cara.



Sérgio Ribeiro e Maria Rocha, 2007

Epigrafia I



Queria escrever e deixar as folhas em que abandono as frases soltas brancas. Queria tocá-las, tatuá-las do início ao fim, aproveitando cada milímetro, cada pequeno espaço e deixá-las brancas. Ou amareladas, conforme o tipo e o tempo do papel.
Custa-me escrever como a quem observa e absorve carinhosamente um instrumento que já não se toca há muitos anos. As primeiras linhas saem arrastadas à força.
A minha mente prega-me rasteiras visuais que quase sinto.
Todas as perguntas que carrego debaixo dos braços e que me seguem todos os dias dentro um caderno de capa preta contêm as respostas de e para tudo.

Faz-me falta sentar e escrever sem parar e mesmo assim nunca deixar de ter assunto.
De dentro dos dedos escorrem palavras.

Fico a escrever automaticamente sem poder antever o que quer que seja. Talvez tudo isto não seja mais que uma manobra de diversão que a mente executa todos os dias antes de liberar o fechar de olhos para mais uma noite longe mergulhada em lençóis de palavras.


Maria Rocha, 2007