quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Caro Data Vermibus

A Sombra:



A sombra era mais pequena que o corpo e isto acontecia sempre e não apenas quando observado de um determinado ângulo. Quase que se dobrava em vénia, quase que em receio de si mesma. Andava atrás do corpo mas parecia que se houvesse a pequena hipótese de se dissipar, assim o faria imediatamente.

O Corpo:


Consistia num sistema de membros, tronco e cabeça e todos os extras que qualquer humano possui. O sexo era só um e não haveria a súbita hipótese de mudança.

- os membros:
arrastavam-se de dentro de botas em tempo de calor e traçavam o caminho recto e mais que exacto de quem segue invariavelmente para dentro do abismo.

- a cabeça:
andava a servir de sombra para parte do peito - a parte esquerda, com mais exactidão -, e
surgia de tempos a tempos escondida por entre olhos cabisbaixos e que, momentaneamente, assumiam as posições letais dos assassinos de part-time.


A Causa:


Tudo o que fizera até ao exacto momento que insiste em escapar-se-nos entre os dedos não fora mais do que um entretimento de quem dorme a julgar que amanhã encontrará a razão de tudo. O porquê de ter nascido, o porquê de ser homem ou mulher, o porquê de sentir que num dia o peso de todos se pode abater sobre si a qualquer momento e o porquê de no instante seguinte ter a pura vontade de sair porta fora, esmurrar a pessoa que mais ama naquele instante e depois pedir-lhe perdão a sorrir.
A sua vida é um esboço em bruto do que realmente pretende ser. Muitos acreditam piamente que será Grande e que viverá longos e brilhantes anos a tentar descobrir o que raio faz para ser detentor num espaço na linha temporal da vida.
Contaram-me que o segredo talvez seja o facto de todos os dias se esquecer de si e de se tentar matar de todos os modos possíveis. A inconstância passa pelas tentativas falhadas ou conseguidas. De cada vez que tenta morrer, é-lhe dado mais e mais tempo.

A Causa?

Nunca vos disseram que morrer é estar mais vivo que nunca nos momentos que precedem a morte?

Maria Rocha, 2006

domingo, 7 de janeiro de 2007

-


A partir deste exacto momento vou tentar que me agarres e me prendas junto ao peito, junto à escassa camada de carne que te cobre as vértebras e me amarres a ti.

Vou tentar que me prendas os pulsos à parede e que os faças descer e os amarres em mim mesmo.


Vês-me?

Desculpa.

Sentes(-me)?


Não deixes que os teus olhos me percam de vista e me desfaçam no horizonte das coisas, dos dias, das pessoas.

Das coisas dos dias e das pessoas sem nome.




Posso ao menos pedir isso?

Pedir (-te) isso?

Como se se te entregasse de tronco curvado o poder do universo?




Então, dou-to.

Entrego-to agora, neste exacto momento em que já te sinto as costelas a roçar nos meus ossos e agora em que te sinto o peito acelerar.

Entrego-to.


Ao universo.



Texto de: Maria Rocha

À Flor da Pele


A razão das coisas que me traz arrastado aqui prende-se ao esquecimento
das palavras gastas todos os dias da minha vida. Esqueço-me de mim.
E esqueço-me invariavelmente de me adormecer; acabo por me acordar
quando todos mergulham em sono profundo.

É inevitável o meu desaparecimento.
No entanto, ainda aqui estou.

Habito uma casa sem janelas, de onde não saem
ruídos nem se conseguem criar frases.

Vivo aqui e mesmo sem ninguém sinto-me
vigiado pela diurnidade da ausência.

De noite, faço por me manter acordado
para que me ouçam gemer e jamais me cessem as estrelas.



Texto de: Maria Rocha

sábado, 6 de janeiro de 2007

Excerto de ti - parte II


Sei que depois dos anos em que ruí tu me visitavas de tempos a tempos.
Sei também que depois de tanto me privar de absolutamente
coisa nenhuma
a verdade desabou sobre o meu peito descoberto:
serves-me como uma segunda pele.


E para que sobreviva neste Inverno, serás o meu soro de Vida.

Fotografia de: Joana Velhinho

Texto de: Maria Rocha