terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Loucura





"Loucura? - Mas afinal o que vem a ser a loucura?... Um enigma... Por isso mesmo é que às pessoas enigmáticas, incompreensíveis, se dá o nome de 'loucos'... (...) A maior parte dos homens adoptou um sistema determinado de convenções: É 'a gente de juízo...' Pelo contrário, um número reduzido de indivíduos vê os objectos com outros olhos, chama-lhes outros nomes, pensa de maneira diferente, encara a vida de modo diverso. Como estão em minoria... são 'doidos'."




in Loucura..., Mário de Sá-Carneiro

domingo, 18 de fevereiro de 2007

A desoras




são demais as horas em que perco a tentar achar-me
quase como uma técnica imperfeita de quem desenha
inúmeros esboços de uma perspectiva

recosto-me na cadeira e fico horas
sem ver mais ninguém senão a ilusória
e dolorosa imagem do espelho imaginário
tudo está ordeiramente arrumado e calmo do lado de lá

e o chão lambe-me os pés em movimentos transatlânticos
e intrauniversais em segundos-luz de cio social
mas saltam as farpas reflectoras do vidro

com a minha face desgrenhada e sou insistentemente
abolido do meu corpo laico e lacerado pelo ontem

o lugar de passageiro sempre foi mais seguro
e estou já estou cansada de guiar em contra-mão



Sérgio Ribeiro e Maria Rocha, 2007

Obediciência




O espaço que habita entre dois corpos torna-se legítimo
após uma onda desproporcionada de silêncio.

E torna-se insustentável a falta de saúde de quem dialoga
de si para si às três da manhã quando do lado de fora da janela
caem pedras de gelo em forma de canção.

O ar sabe a impasses do sol ao subir
no esquálido frio da madrugada que dança
o silêncio das árvores - pares no baile da alienação mental.

Sugam-se as mãos dos semblantes
numa luta de cravos e pombas brancas.

"Até quando poderei suportar a minha própria ausência?"*

Cada palavra é como se fosse um grito exigido à força por alguém
que ronda a dificuldade de quem outrora foi artista na mestria da escrita.

Alguém que arquiva meticulosamente as fotografias tiradas
por um detective diário e que deseja regressar ao pequeno habitáculo
onde esperava um outro alguém que nunca chegou a prometer que vinha.




(...)

Já se passaram centenas de dias desde que me lembro estar em forma de corpo e em união com tudo o que sempre me acompanha. Faço-me crer que debruçar-me demasiado tempo sobre o mesmo pico abismal já se tornou o meu lar único e fiel. De já ter caído tanto e tão fundo e mesmo assim não apresentar marcas de cortes e de tombos num trajecto descendente, faz com que de cada tombo nasçam novos quilómetros de abismo que insistem em afastar-me do chão que tanto me amparava. A verdade cria um cansaço latente que me circunscreve os membros e me faz observar de fora e de dentro o que faço, como me movimento e como precisarei eu de alternar a equidistante obediciência dos candeeiros nocturnos que se desligam quando pressentem a minha presença.


Estamos perdidos.


Irremediavelmente perdidos na deambulação insone de todas as noites.


*frase de Al Berto, Poeta


Sérgio Ribeiro e Maria Rocha, 2007

sábado, 17 de fevereiro de 2007

Do Nome




diz-lhes que és o mar

e

que revolverás rocha sobre rocha
até raiar de novo a luz
na costa da cidade



Maria Rocha, 2007

1:29



Já faz muito tempo que não me confesso.
Fi-lo apenas uma vez.

Lembro-me que Deus costumava fazer sentido antes de fazer desaparecer pessoas.


Maria Rocha, 2007

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

A Cold Condolence



nunca ninguém se importou com os sapatos
mais que gastos, rotos até

(que) um dia o chão parecia céu em chamas
do sangue que arrastava todas as provas
que nos implicam presentes debaixo
daquela janela (d')onde um esqueleto
se abalroou por (livre) vontade


---

("A Cold Condolence" foi publicado no número 01 da revista literária Callema que data o mês de Novembro)


Maria Rocha, 2006

(S)ala psiquiátrica

[...

x - É humano regressar àquele barulho característico das navalhas a roçarem uma na outra.
A ordem é desigual. Pouco importa qual a navalha que te conhece melhor as falhas da pele e aquela na qual o teu reflexo se extingue. De todo o processo, isso é o que menos importa agora.
Vês aquela contra-luz na parede?
Aí... nesse exacto local onde acaba a sombra e começa o objecto real.
Concentra-te.
Respira fundo... e grita.
Isto és tu a esmurrares a parede e todos os insultos com um grito seco e ao mesmo tempo arranhado de uma voz que já se tinha esquecido da elevação certa.......................

y - Merda, a minha cabeça vai rebentar. Vai. Sei que sim. Sinto uma veia que insiste em ser bombeada com sangue e pregos com uma aceleração anormal...

(Pausa)

x - Lembras-te de quando me conheceste?

y - Lembro. Tu ouviste a palavra pregos?

x - De que te lembras tu?

y - Lembro-me de te conhecer num dia, num mês e num ano. Num local e com pessoas a assistir. Pessoas que serviram como testemunhas perante todas as outras que, infelizmente, não puderam comparecer no acto. Pregos. Pregos... Pregos.

x - Lembras-te disso?

y - Dos pregos? Estou a senti-los neste momento.
(faz uma pausa e leva a mão direita à cabeça)
Lembro-me... de teres pedido um café e de não o teres bebido.
Deixaste o café, a chávena e a colher arrumados a um canto da mesa e quase jurava que os tinha visto aos três a combinarem atirar-se mesa abaixo... (ri-se). Lembro-me do empregado de mesa que espiava todos os items que nos tinha gentilmente fornecido.
Lembro-me dele... de como a sua expressão exalava angústia.
Lembro-me de pensar no que faria ele se não estivesse ali naquele momento a vigiar todos os objectos que tinha previamente...Ahhhhhh! Não me lembro, está bem?
Não me lembro de quem és.
Não me lembro de como cheguei aqui e muito menos do dia em que conheci alguém a quem não reconheço a voz, os olhos, os lábios e entrada aqui neste momento.

x - É incrível... a tua imaginação continua... Espera. Tu... gritaste? Diz-me que não. Não, diz-me que sim. Ou... confirma-me.
Descreve-me isso e, sobretudo, explica-me como se faz...

y - O momento é este. Tu estás à minha frente e começas por segurar com a mão esquerda um copo, não com a direita. Seguras, então, com a mão esquerda um copo. Ninguém está realmente interessado no líquido do copo. Aliás, ninguém está realmente interessado no copo e por que razão o seguras tu com a mão esquerda quando,
na verdade, todos sabem que és dextro.
E o momento é o mesmo apesar dos segundos de todos os presentes na sala já se terem esgotado nessa falta de assunto que lhes corre nos cérebros.
E agora, é ver-te a comandar a massa cerebral alheia como quem pede a alguém que se mate gentilmente; que se decapite mas de forma a não sujar os novos estofos das cadeiras. Contra a parede exibe-se um corpo pendurado com os orgãos a espreitar e ao virar da esquina ouve-se o ruído final das navalhas a serem afiadas novamente.
Junto à parede está um martelo com algumas gotas de sangue...........................



...]
Maria Rocha, 2006