segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Sala 30


Fizeste-me lembrar algo que estava semi-arrumado numa gaveta.
Ainda guardo os suportes escritos das personagens sublinhadas
que fizemos nascer. Lembro-me que me apanhaste a meio de uma metamorfose. Nunca mais fui a mesma. A partir daí, começaram-me a tratar pelo primeiro nome, tal e qual na primária. Desde sempre foi assim, excepto naqueles anos específicos em que vesti peles diferentes, em que me destruí e me reconstruí vezes sem conta. Aprendi a ser calma, mais ainda do que conheceste. Também aprendi a viver mais, a ler mais, a abraçar mais.
Tinha tanto medo de o fazer, sabes. Se não vos tivesse conhecido não seria a mesma que hoje a minha pele esconde. Antes de começar a escrever-te, levantei-me da cadeira e fui fechar a porta na ingénua tentativa de parar e retroceder o tempo até lá.
Aquele momento em que estavas lá em baixo e nós te acenávamos de dentro daquela sala que, na verdade, era mágica - permitia-nos ir de forma vazia e sairmos de lá cheios, plenos. Estou com esta a palavra a passear-me por dentro há uns dias. Aconteceu-me tanta coisa. Atravessei tantas pontes nestes anos. Às vezes, regresso a alguns lugares-comuns. Lembras-te disto também? Há pessoas que, por mais longe, por mais mudadas que estejam exteriormente, continuam as mesmas crianças por dentro.
Queria contar-te muito mais. Queria muito mais. Continuo a querer. E querendo ou não, fazes parte de mim. O mérito é teu. O amor é meu. Nosso.


"Lembra-te que és apenas metade do que podes vir a ser."



Maria Rocha, 2008

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Qualquer coisa assim


Apeteceu-me agarrar em mim e ao invés de selar e enviar-te uma carta pelo correio... ir eu mesma entregar-ta em mãos. Dizer que te perdoo, que te desculpo, que não guardo em mim ponta de mágoa. Agarrava no carro e percorria o mesmo trajecto pela última vez mas leve tão leve que o céu se abria para me facilitar a viagem. Chegava à porta da tua casa e deixava a carta junto ao tapete com uma pedra por cima. Decerto que ias perceber que era minha mesmo sem o remetente, mesmo com uma caligrafia desconhecida. Apetece-me que seja esta a minha última vida. Continuo a não ser compreendida e continuo a fazer um esforço absurdo por compreender os outros. Muitas vezes traço uma linha limite que deixa a visão um bocadinho turva e me cega por momentos. Tenho medo. Um medo sem comparação.
Mudei muito, mas há coisas incontornáveis.
Por vezes, o tempo é nada mais nada menos que um
aliado silencioso que nos reserva surpresas permanentes.

E eu percebi que não preciso de viajar muito para encontrar o meu porto de abrigo.


Maria Rocha, 2008

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

I


sonhar talvez seja o lugar onde nos abandonamos

e

nesse lugar sem dimensão ou cheiro
talvez se possam conceder os mais terríveis desejos


Maria Rocha, 2005

Primeira Parte


Sabes, os espaços podem ser terrivelmente redutores e castradores. Confesso que esta última palavra me aterroriza ao ponto de até ter receio de em palavras sequer reproduzi-la. Talvez um receio maior que se aproxime dos ataques humanos que se assistem por aí, por aqui e outra vez por aí - "porque há coisas que só aos outros acontecem". Estar aqui será o mesmo que não estar. E a sensação será tão maior que será inexplicável bem como a palavra última. Reproduzi-la... seja em letras, seja em desenhos. Há sempre alguém que nos interpreta qualquer que seja a imensidão do nosso fosso. E digo já fosso porque aceitando-se toda a idiotice, estar-se-á preparado, todo o humano-comum, para se autoflagelar e se deitar dormindo serenamente sobre todos os assuntos mal resolvidos.

Maria Rocha, 2005

Espelhos



Este é o dia em que decide arrumar as roupas. Dobrá-las e enfiá-las à pressa na mala para iniciar uma viagem que planeia há muito. Não sabe bem para onde nem com quem muito menos quando voltará. A certeza é de que nos últimos anos todos os dias são o dia do início da viagem. A mala está feita todos os dias de manhã mas todos os dias surgem sempre mais roupas para arrumar. Engraçado, essas mesmas roupas que servem de base no fundo da mala que em tempos ficavam justas ao corpo estão hoje tão longe do corpo como ele do seu próprio corpo. Eu fico aqui, quieta, debruçando-me em todo o meu silêncio e paz somente a vê-lo crescer, a vê-lo tentar libertar-se de si mesmo todos os dias. Às vezes penso que estarei a desempenhar um papel de pequeno deus pois assisto imune a tudo e não me movo. Mesmo que quisesse não o faria. E ele, enquanto me passam todos estes pensamentos pela cabeça, continua a vestir-se e a viver os dias como se todos os dias fossem o começo de uma nova vida e também o final de outras. Eu sorrio as vezes que ele se senta à beira da cama e leva as mãos à cabeça. Sorrio e penso que em algum momento ele se lembra de mim. Continuo a ver os anos a passar por mim. Ele esforça-se por agarrá-los e muitas vezes consegue livrar-se de si e acelera o caminho. Tudo isto se dá quando está sozinho no quarto, quando o vejo de noite a chorar e a calar o choro de madrugada para que mais ninguém saiba que também queria poder falhar. De seguida, vejo o seu peito lentamente a abrir-se, devagar e com muito cuidado. Por uns momentos vejo-lhe no fundo dos olhos a força que mais ninguém ousa ter para enfrentar o mundo outra vez. Depois… o peito torna-se a fechar muito devagar. O receio de errar é sempre maior que toda a vontade que se tenha por algo – pensávamos os dois em uníssono, no sítio da mente em que também se fala em silêncio. É agora e aqui que eu assistindo na plateia queria muito poder chegar-me e dizer-lhe ao ouvido que tudo ia ficar bem, segurar-lhe-ia na mão beijando-a e dizia-lhe de novo que tudo ia ficar bem. Ele volta à sua vida e à rotina dos dias em que iria fazer viagens para todos os cantos do mundo todos os dias com pessoas desconhecidas e viveria aventuras. Viveria, sim… e faria todas as viagens do mundo com as roupas que já nem lhe serviam no fundo da mala. Faria tudo isso só para poder voltar e poder contar-me. Eu, uma vez mais, estaria aqui sempre, silenciada e em paz sempre à espera de o ouvir. Nunca o impediria de seguir nenhuma viagem pois sabia que acabaria sempre por voltar. De novo, recomeçaria o papel de pequeno deus e lentamente tentaria abrir-lhe o peito e dizer-lhe que agora estava tudo bem e que podíamos sempre chorar os dois e falhar as vezes que quiséssemos e ninguém nos apontaria o dedo. E depois íamos rir do que ficou para trás. Uma vida inteira. Eu teria vivido a minha vida e ele a dele. No fim de tudo restaria apenas uma só palavra que jamais se teria dito mas que eu sei que ele pensou… e eu também.

Maria Rocha, 2005

domingo, 9 de novembro de 2008

Cena II



este é o sítio mais longínquo e ao mesmo tempo mais perto que alguma vez poderei alcançar.
este momento. este, agora e sempre. aqui que me perco dentro de consoantes e vogais a tentar desmistificar o meu ser. e o teu e o do outro, o de todos nós. no fundo escrevo-me escrevendo-vos a todos porque somos todos feitos de carne e osso.
alguns com mais sentidos, outros nem tanto. e este é o momento em que se arde pressentindo que nada nos fará quebrar. estamos quebrados em dois há muito.
tudo começa desde que se nasce e vai-se degradando até chegar ao período em que a idade é menor que toda a bagagem que o corpo suporta.
talvez como uma pessoa que se senta a escrever e que tem uma espécie de aura que ocupasse um número infinito de quilómetros que do fim da sua extensão se beijassem os astros.
é um daqueles momentos em que se vive tudo num segundo e se saboreia o mesmo segundo estendendo-o para que nos possamos passear em nós mesmos. revê-se tudo.
rostos, pessoas, rostos, mãos, olhos, rostos e traços gerais. tudo muito pouco nítido. memórias, talvez. visões, talvez.

momentos em que parece que nos profetizamos e nos projectamos num qualquer sítio a viver uma vida com alguém que não nos recordamos do cheiro.
visões, talvez.
ou uma vontade infinda de agarrar todos os humanos que por nós passam todos os dias nos carros, nos passeios e os que vemos em jardins, em parapeitos... todos sem distinção. agarrar neles e poder contar-lhes a vida e ouvi-la deles. tudo isto num segundo alucinante e estendido.

só depois terminar... com um sorriso de improviso nos lábios.


Maria Rocha, 2005

sábado, 1 de novembro de 2008

Dispersão


Houve, a dada altura, uma convergência quase sobre-humana que se abriu e intercedeu por entre as fendas do tecto. Não há como o negar. Mas acho que todos os meus passos e as minhas falas irão apenas conseguir essa sublimação: uma espécie de encontrão com alguém que venha na direcção oposta. Quando muito posso propositar o acidente de uma queda e demorar mais esse encontrão, mas não vou conseguir virar as costas ao rumo incerto que sigo.

Esse é só meu.

Se me deixasse de perder não seria eu.



Maria Rocha, 2007