sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Directamente do Inferno



Tudo o que eu venha a escrever a partir de hoje é certamente uma décima do que se passa. Um exemplo a que nem a palavra exemplo deveria servir por tão redutora imagem que poderá passar. Digo-te que a música está em repeat mode. Digo-te que os orgãos insistem espreitar boca fora. Digo-te. Em silêncio. E tudo o que poderei dizer não passará apenas de palavras a suicidarem-se boca abaixo.Gasto imenso tempo a escolhê-las e depois celebram-me assim. Dir-te-ia muito mais. Mais. Como a forma como as minhas mãos agrafadas se parecem com estátuas à espera de se quebrarem em si mesmas. Como a forma como se formam nós na minha garganta. Como eu saber exactamente o que tenho de fazer para terminar isto. Mais um crime. Mais um. Como eu saber que é crime e hesitar no que sei que devo fazer. Mais uma vez. Desculpa. E nisto, falo comigo e para mim. Desculpa, mas vou ter de matar.

Digo-te: "fecha os olhos."

Nunca viste nada. Nunca foste capaz de ver. E, certamente, não é agora que vais começar a ver.Tudo o que eu venha a escrever a partir de hoje, não poderás ler.

É simples: eu não existo; eu morro (todos os segundos).

Maria Rocha, 2006

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

De navalha em navalha...


Se continuares aí, nesse exacto canto onde a luz te esconde um terço da face, vais, em breve, desaparecer juntamente com os meus braços.
Daqui a pouco vou à janela e vou estendê-los e esperar o tempo que for necessário até que ganhem gangrena e sinta, assim, morrer as extremidades. Ainda aí estás, reparo. Não dizes nada. Olha à tua volta. Vês o mesmo que eu? A única coisa que vejo é o parapeito da janela e o relógio da sala a fazer o barulho que lhe é característico.
Vês? Até mesmo um objecto, aparentemente, sem vida consegue ter mais vida e ser mais previsível que eu. Esquece. Não adianta desta vez passares-me a mão pelos braços. Os mesmos que espero que daqui a uns minutos morram antes de mim. Não creio que consigas com a tua falta de palavras vencer esta minha obsessão. Pára... Nota a palavra. Ob-sessão... Desconstrói. Fazes isso por mim? O quê? Não faz sentido?!
Pois, nunca fez. Nunca fiz. Não me vais trazer novidades debaixo dessa luz que está quase, quase a desaparecer, pois não?
Estimo-te, mas lamento dizer-te que te estás a imiscuir na rua, nas pessoas estranhas e até naqueles bocados de chão já corruptos.
Lamento mas estás mais invisível que eu no momento.
Lamento e não te estimo porra nenhuma.
Lamento e repara em como não quero saber se estás aí debaixo ou se desapareces. Lamento e informo-te que, muito provavelmente, a única coisa que nunca fez sentido aqui és tu. Não me enganei nas formas verbais e tão pouco me esqueci da revisão. É só para te dizer que o número dos braços estendidos vai ser repetido todas as noites e só me interessa saber se haverá corpos a observar. Se és tu, pouco importa. Lamento, mas esqueces-te frequentemente de que sou actriz.
Não (me) confies...



Maria Rocha, 2006

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Ametria


Escuta. Senta-te aqui. E... não digas nada. Absolutamente nada. Seguir para a rua, pisar o chão com a dose pessoal de combustível a entrar pelos ouvidos é único. Singular. É isso. O levantar do sobrolho, morder o lábio discretamente enquanto te apetece largar as malas, os casacos e partir um par de ossos inúteis que se encontram disfarçados por vozes de rádio ruidosas. É o que me parece. Não achas? Se calhar é por isso que ando a ouvir cada vez mais. É que, francamente, estou cada vez a ouvi-los menos. Devia pedir por favor, perguntar se posso entrar, se devo falar. Devo. Devia. Devia? Não me parece. Confesso-me pela milionésima vez e continuo repleta de mistérios e segredos que salvo um par de almas os sabem mesmo sem os sequer ter proferido. E é quase isso. Sair para a rua com os ouvidos cheios de música e senti-la a percorrer-me o corpo e a sentir as minhas veias vivas e a gritarem-me que é tão bom estar aqui e deixar marca no chão cheio de lama, não ter medo de me sujar porque o melhor é passar pelos anos e ficar com cicatrizes que nos diferenciam dos outros. Nunca fiz muito sentido. E este cruzar de pernas característico que me conforta dentro de quatro paredes já me guardou um lugar menos confortável também. Há um reverso em tudo. Como um vidro sujo que mesmo assim nos permite observar o que está do lado de lá. Lamento muito mas é-me complicado dar um sentido contínuo a tudo o que me passa dos dedos para o papel, mas acho que a vida que levo é tão egoísta que não permite que me entregue a mais nada de forma sólida, futura e misteriosa. Nasci com este propósito. Que me esfreguem na cara todas as folhas vandalizadas que arrancarão dos meus blocos anos mais tarde, meses por vir ou mesmo amanhã, acaso acorde. Que me façam tudo isso e que me privem de tudo menos da minha sanidade maleável de actriz constante. Perdi-me em explicações. Deixei falsas pistas por caminhos também falsos, errados talvez. E apesar de ser reflexo em tudo o que faço, permiti-me vaguear neste corredor - invariavelmente vazio - tempo demais. Gosto tanto de estar aqui; que não perturbem a minha paz; que me não leiam de uma forma avassaladora, assustadora e redentora; que não me façam regressar. Misturo-me muito ultimamente: confundo e confundo-me. Mudo mas volto a mudar e não mudei em nada. E regresso. Não é redenção. É por isso que me canso e não sei (e sei porquê), e canso-me constantemente. É a única certeza. Já me contaram alguns dos segredos do Universo. Creio que a partir daí nunca mais consegui andar com a cabeça tão erguida como quando andava com ela realmente escondida.


Maria Rocha, 2008